Salmos 23 – Adonai, meu íntimo Amigo
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A relação entre os Salmos 22, 23 e 24 tem sido percebida há muito tempo. Neles, Davi revela Iavé como: “O Salvador”, “O Pastor (o Amigo Íntimo)” e “o Soberano”. Alguns autores identificam os três Salmos respectivamente com a Cruz, o Cajado e a Coroa. O Salmos 22 é citado sete vezes no Novo Testamento em relação a Jesus. O versículo 1: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” é citado em Mateus 27:46 e Marcos 15.34. O versículo 18: “Repartem entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica deitam sortes”, é citado no relato da Paixão de Cristo nos quatro Evangelhos. Logo em seguida, o versículo 22: “A meus irmãos declarei o teu nome; cantar-te-ei louvores no meio da congregação” é citado em Hebreus 2:12.
Davi, o grande rei de Israel, era um homem de batalhas, que na vida colecionou muitos inimigos. Conhecido por sua personalidade forte, por vezes, dura como o aço, em outras ocasiões, todavia, gracioso e doce como o mel, ele foi responsável pela escrita de quase metade dos salmos da Bíblia. Para Davi, o Senhor era o Seu Amigo Íntimo, presente em todos os momentos, inclusive nas batalhas.
Primeiro passo para uma boa Hermenêutica (ciência, técnica que tem por objeto a interpretação de textos, especialmente das Sagradas Escrituras) é aplicarmos uma boa Exegese (tem por objetivo fazer uma pesquisa minuciosa de um texto ou uma palavra).
O Salmos 23:1 diz:“O Senhor é o meu pastor; nada me faltará”.
Tomemos o versículo no original hebraico:
אֶחְסָֽר | לֹ֣א | רֹ֝עִ֗י | יְהוָ֥ה | לְדָוִ֑ד | מִזְמֹ֥ור |
Eh-sar | lo | roi | Yehav (Jeová) | L’David | Miz-mo-wr |
Faltará | Não | Amigo Íntimo | Adonai | de David | Cântico |
A tradução literal do Salmos 23:1, então, ficaria assim:
“Adonai (Meu Deus) amigo íntimo não faltará”.
Davi usou a palavra hebraica רֹ֝עִ֗י (Roi = Rea = Reeh = Amigo) que tem as mesmas letras hebraicas que a palavra pastorear: Resh, Anyn, Hei. A ideia de pastoreio está implícita nos versos 1 ao 4 onde Davi se compara como uma ovelha. Nestes versículos Davi fala que o Senhor é seu Amigo Íntimo, e, como consequência, o faz repousar em pastos verdejantes, leva ele para junto de águas de descanso, o guia pelas veredas da justiça. Portanto, Davi não teme nenhum mal ou em nenhuma situação de perigo, porque o Senhor ESTÁ COM ele, e Seu bordão e cajado os consolam.
Sendo assim, o sentido de Pastor é uma metáfora, está implícito nos primeiros versículos. Já dos versículos 5 ao 6 Davi passa a habitar na Casa do Senhor. O relacionamento íntimo de Davi com Adonai é expresso por duas figuras: uma representando o Amigo Íntimo (ou Pastor Protetor) e outra o Anfitrião Gracioso.
Ao fazer a exegese do texto hebraico, observamos que a raiz da palavra hebraica רע Rea ou ריע Reya significa, segundo a Concordância de Strong (H7453) significa: amigo íntimo, amigo especial, companheiro de todos os momentos, inclusive os momentos difíceis com de batalhas: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque TU ESTÁS COMIGO; o teu bordão e o teu cajado me consolam”. O sufixo י de רֹ֝עִ֗י indica o possessivo: amigo íntimo. Portanto, literalmente: O Senhor é meu íntimo amigo e ELE NÃO ME FALTARÁ. O verbo “faltar” está ligado diretamente ao substantivo “Senhor” (Adonai), o amigo íntimo.
As traduções não estão “erradas”, mas nos “induzem” ao erro, uma vez que ao fazermos a interpretação do texto entendemos que, o fato de o Senhor ser o nosso pastor, não deixará faltar a nossa subsistência cotidiana. Porém é muito clara o texto original que diz que Adonai não nos faltará. O que não faltará, para aqueles que são amigos íntimos do Senhor, não são as “coisas” efêmeras e passageiras desta vida, mas a Sua Inefável e Íntima Presença. A construção da frase no hebraico é bem simples. É tão verdade que se invertermos o sentido do Salmo a significação é a mesma: “Não me faltará o amigo íntimo, meu Deus”. A ênfase do versículo 1 não está na providência das coisas materiais, mas na presença constante do Senhor ao lado daqueles que n’Ele confiam, ainda que tudo lhes falte. A bem da verdade, se o Soberano Senhor e nosso Amigo Íntimo está conosco não sentiremos falta de NADA.
Agora podemos compreender que o verdadeiro significado do Salmos 23:1 é exatamente o contrário do que muitos têm pregado, ensinado e ouvido durante tantos anos. É uma interpretação muito egoísta aquela que diz: “O Senhor é o meu Pastor e nada me faltará”, pois nos leva a acreditar que o fato de sermos cristãos nunca padeceremos escassez de nada.
É uma ideia difícil até de se sustentar diante de tantas dificuldades por que passaram os heróis do Antigo e Novo Testamento.
“Sei estar abatido, e sei também ter abundância; em toda a maneira, e em todas as coisas estou instruído, tanto a ter fartura, como a ter fome; tanto a ter abundância, como a padecer necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece” (Filipenses 4:12, 13).
Veja que Paulo passou fome e necessidades, porém foi sustentado pela presença do Senhor. Aquele que o fortalece é a razão de seu sustento e vitória. O alimento e os bens lhe faltaram, mas o “Amigo Íntimo, o Senhor Adonai e Aquele que o Fortalece não lhe faltou”.
“Ainda que eu andasse pelo vale da sombra (hb., escuridão profunda e mortal) da morte, não temerei mal algum”. Aqui está a certeza da ajuda no momento mais difícil da vida. A morte não é um adversário desprezível. Ela é o nosso último grande inimigo (1 Coríntios 15:26). Se Deus pode nos dar coragem nesse momento, como tem dado a tantos outros, Ele pode nos ajudar em qualquer lugar. Mal (ra) é um termo amplo para qualquer tipo de dano ou perigo que possa nos sobrevir.
A mesa preparada pelo Anfitrião Gracioso (23:5, 6)
A ideia do completo suprimento de cada necessidade com a qual o Salmo inicia continua controlando o seu desenvolvimento, mas a comparação muda do Amigo Íntimo (que pastoreia) para o Anfitrião gracioso, ou seja, Ele está presente seja no campo ou em casa.
A expressão “preparas uma MESA perante mim na presença dos meus inimigos” (adversários – vs. 5) retrata a marca da apreciação pública que o rei oriental mostrava àquele que desejava honrar de uma maneira especial. Essa é a única referência passageira aos inimigos que aparecem descritos tão amplamente em outros Salmos de Davi, principalmente no Livro I dos Salmos.
“Unges a minha cabeça com óleo”: não é o óleo da unção que era usado para empossar o rei ou o sacerdote; um outro termo hebraico é usado para esse fim. Esse era um óleo perfumoso amplamente usado em banquetes do Oriente antigo como marca de hospitalidade e favor. A cabeça ungida com óleo é uma figura bíblica comum para abundância de alegria.
“O meu cálice transborda” simboliza a provisão abundante oferecida pelo Anfitrião bondoso.
“Certamente que a bondade e a misericórdia” (chesed, amor manifesto, graça) “me seguirão todos os dias da minha vida” (vs. 6). O termo traduzido por “certamente” também significa “unicamente”. O salmista está confiante em que apenas a graça e o amor imutável farão parte da sua vida. “Habitarei na Casa do Senhor por longos dias”, ou “para todo o sempre” (ARA). Mas o significado mais profundo é mais do que uma longa vida nesta terra.
A MESA da reconciliação, do perdão, cura e libertação
Pense bem: porque você não sentaria com inimigos à mesa? Inimigos, você os enfrenta no campo de batalha. Pedir uma mesa na presença de adversários é algo, provavelmente, impensável, eu sei, mas esse era o desejo de Davi. Para Davi, uma mesa na presença dos inimigos não significa uma demonstração de vitória sobre eles, não é uma mesa de deboche, mas sim uma oportunidade de reconciliação.
A mesa se põe na presença dos inimigos para que eles possam novamente sentar-se ao meu lado, pois assim é possível haver perdão, cura e libertação. O óleo que desce sobre a cabeça tem por finalidade sarar a consciência e produzir saúde para pacificar a alma, e o cálice, aqui também alegorizado, deve sempre transbordar o vinho da alegria, deixando vazar o regozijo que há quando na vida se torna possível o reencontro e a reconciliação.
A mesa tem vários significados, mas talvez o maior deles seja a comunhão. É em uma refeição que nós temos boas conversas com as pessoas. Também foi numa mesa que Jesus declarou a Sua aliança conosco, falou sobre a Sua carne e o Seu sangue que seriam derramados em nosso favor. Estabelecer paz com o outro não significa concordar com o modo de vida dele. Significa ter paz, ainda que discordemos com o modo de vida, a fim de que pela paz que estendemos, compreenda o amor de Deus e tenha sua vida transformada.
“Não torneis a ninguém mal por mal; esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens; se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens…” (Romanos 12:17, 18). “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9).
“E tudo isto provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação” (2 Coríntios 5:18). Deus não nos deu o ministério de recalque e ostentação, mas de reconciliação, da mesma forma que Ele nos reconciliou com Ele mesmo e com Cristo. Não é à toa que a presença dos inimigos é tão requisitada nessa mesa.
Somos gente da paz, da reconciliação e não da guerra. A nossa luta não é contra carne ou sangue, mas contra principados e potestades nas regiões celestiais. Quem senta na mesa da reconciliação o faz com o cálice transbordando de bondade e fidelidade.
O Reino de Deus é uma grande mesa posta. Veja o que diz esse versículo de Lucas: “E virão do oriente, e do ocidente, e do norte, e do sul, e assentar-se-ão à mesa no reino de Deus” (Lucas 13:29). Deus, inclusive, colocou uma mesa no Tabernáculo, a mesa com os pães da proposição, representando nossa comunhão. Na mesa Deus coloca o alimento. Muitas vezes estamos fracos, mesmo espiritualmente, porque nos falta essa comunhão, falta esse contato com Deus e com as pessoas.
Na mesa, grandes alianças foram feitas: Abraão e Melquisedeque, Jesus e sua igreja… ambas seladas com pão e vinho. A mesa traz as pessoas pra mais perto, há algum mistério em comer juntos que eu sem dúvidas não sei explicar, mas quero concluir tudo isso que eu disse com uma coisa: Precisamos participar dessa mesa. Precisamos do corpo de Cristo e do seu sangue, precisamos da igreja, precisamos da reconciliação, precisamos da comunhão e do alimento. Deus nos criou para isso, e sem essas coisas seremos enfraquecidos.
A mesa é um lugar de reconciliação:
Em Gênesis 26:28-30 fala de Isaque e o rei Abimeleque em um momento de reconciliação sentados à mesa no deserto. Em Gênesis 31:44-46 fala de Jacó e Labão em reconciliação na mesa. O texto diz: “Agora pois vem e façamos um pacto, eu e tu e sirva ele de testemunha entre mim e ti. Então tomou Jacó uma pedra e a erigiu como coluna. E disse a seus irmãos: Ajuntai pedras. Tomaram, pois, pedras e fizeram um montão, e ali comeram”.
A mesa é um lugar de restauração e manifestação da graça:
Em 2 Samuel 9:1-10 diz que Davi lembrou-se de sua aliança com Jonatas filho de Saul e perguntou: “há ainda alguém da casa de Saul para que eu possa usar de misericórdia (graça) por amor de Jonatas? Disseram, ainda tem Mefibosete”. Este rapaz, Mefibosete[1], nascera para ser um príncipe, mas estava vivendo na miséria. Ele era aleijado de ambos os pés. Sua babá o derrubou enquanto fugia dos inimigos e provavelmente ele quebrou os pés e os ossos cicatrizaram de forma torta.
Alguém que tem os pés quebrados não consegue andar ereto olhando para o céu, se cansa rapidamente e não consegue chegar aonde os outros chegam. Ele foi chamado para assentar-se na mesa do rei, recebeu honra, pode desfrutar de comunhão íntima, lá na mesa tinha os pés encobertos, ele que morava em Lo-Debar[2], lugar deserto e seco, mudou-se para Jerusalém e foi morar no Palacio. Foi uma Restauração completa.
Mefibosete cresceu coxo de ambos os pés, vivia num lugar distante e sentia vergonha de tudo e de todos. Ele lutava contra os pensamentos de rebaixamento e vergonha. Ele não imaginava que poderia ser recebido com honra na presença do rei, pois a vergonha e o medo lhe dominavam. Porém, seu pai, antes de morrer, fizera uma aliança com o rei. Mesmo que ele não soubesse, tudo já estava preparado.
A graça procura o Homem no nível mais baixo e a glória eleva o Homem ao nível mais elevado.
Em nossa jornada com o Senhor, muitas vezes o diabo tenta nos convencer que devemos ficar distantes de Deus e nos acostumar com uma vida natural, afinal, quem somos para que Ele se importe. Mas, mesmo não merecendo, se estamos em Cristo, podemos chegar à presença de Deus com ousadia e convicção: “Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna” (Hebreus 4:16). Assim como Mefibosete, temos uma mesa na presença do Senhor onde podemos sentar e comer todos os dias. Ele nos recebe, não por nosso merecimento, mas por causa da aliança de graça eterna feita em Cristo.
Quão bom seria poder sentar numa mesa como essa, fosse eu convidado de outrem, fosse o anfitrião da festa do amor! Por isso, se te for possível, reconcilia-te ainda hoje com o teu semelhante, pondo perante ti e ele uma mesa, conclamando Deus como tua testemunha desse ato de grandeza. Sim, faça isso enquanto ainda há tempo, pois talvez chegue o dia em que a tua mesa seja apenas feita de distâncias e nela tu estejas, absolutamente, só…
[1] Mefibosete, em hebraico מפיבשת, significa “da boca da vergonha”. Veja 2 Samuel 4:4. Segundo as passagens de 1 Crônicas 8:34 e 9:40 ele também se chamava Meribe-Baal, “aquele que luta contra Baal”, contra a vergonha.
[2] Literalmente “Não-Palavras”, silêncio, “Não-Memória”. Naquela cidade só havia mendigos e doentes. Era a terra do esquecimento e da honra destruída.